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Abóboras - texto do livro "Colorido só por fora: contos periféricos"


Abaixo, compartilho mais um conto que integra o livro "Colorido só por fora: contos periféricos", (publicaçao independente, 2015). Para saber mais sobre o livro e ler mais textos da obra CLIQUE AQUI


Abóboras

..."Eu sou um trator. Ouviram? Sou o novo trator de Minas". Todos acharam normal quando o prefeito de Abóboras disse isso, na festa de inauguração dos buracos de uma trincheira. A guerra estava chegando. Talvez por isso ninguém tenha estranhado. No outro dia, no seu gabinete, o prefeito começou a cavar, com as próprias mãos, os buracos que ficariam para sempre na memória da cidade.

Não demorou muito. Partidos começaram a se preparar para a guerra, enviando militantes para os gabinetes públicos, em troca de dinheiro e silêncio. Pouco a pouco, todos escolhiam o lado mais previsível e conveniente da trincheira.

Abóboras seguia tranquila, adaptando-se aos novos e fantásticos decretos do prefeito. Um dia, ele decidiu proibir que o enxergassem como humano. Irredutível na ideia de ser um trator, determinou que todos deveriam vê-lo como coisa, objeto, amarelo, pesado.

Abóboras era uma cidade de famílias e coronéis, quase esquecida no meio da região central de um grande estado. A pesar de produzir muitas riquezas, dentre elas, fumaça e lendárias histórias sobre a sua origem, Abóboras também produzia muita pobreza, e a pobreza cultural afetava, como uma praga, todos os burocratas da cidade. Tentavam resolver o problema cultural, que para eles era incompreensível, investindo anualmente uma considerável quantia de dinheiro público na implantação de arenas, onde se assistia a animais sendo torturados e se comemoravam as aparências. Os eventos decadentes ajudavam ainda mais a proliferar a praga. Contaminavam grande parte da população e eram tidos como um marco da gestão do governo, pelos próprios governistas.

Não sendo isso suficiente, criou-se um departamento com burocratas experientes, só para tratar dos assuntos culturais, cujo objetivo principal era paralisar a imaginação, coibindo a ação dos poetas e artistas, que foram tomados como uma ameaça constante aos bons costumes da sociedade Abóbrense.

A guerra era silenciosa e fazia de Abóboras um lugar cada vez mais triste e violento. O prefeito preocupado com eleitorado do ano seguinte, passou a impulsionar uma nova indústria. A indústria da defesa. Responsável por produzir uma sensação de paz e segurança na população local, a indústria, avançou numa velocidade inacreditável. Pelo chão.

O asfalto da cidade era rasgado, de um canto ao outro, por homens vestidos de preto acompanhados de um grande cachorro. A vida, o comércio, a religião, tudo começou a ser monitorado. Nos buracos rasgados pelo chão, cultivaram um medo que, incrivelmente, cresceu nas pessoas. Ninguém estranhou nada. Nem perceberam quando o prefeito criou uma nova lei que tornava Abóboras, cidade irmã de uma outra cidade na China. O prefeito cada vez mais confundido com uma máquina, julgava que Abóboras tinha vocações chinesas.

Os chineses, no entanto, só ficaram sabendo que tinham uma cidade irmã, quando uma comitiva de burocratas e comerciantes foi recrutada e enviada para a China, com a missão de entregar uma carta enorme ao imperador. Única razão para justificar o envio de vinte e dois representantes e uma informação.

Quando voltaram da viagem, o prefeito havia mandado pintar o lado de fora das casas e barracões das periferias, para dar-lhes a aparência de um lugar alegre. Mandou marcar as paredes com selos de remoção e começou a doar terras para a construção de um Oásis. O que julgava, novamente, ser de bom grado para a China.

O mercado das sensações se interessava cada vez mais pela cidade. Novas fábricas surgiram. Produziam complementos bélicos e arcavam com a responsabilidade social, ajudando a apagar qualquer memória do passado. O presente era um único tempo possível e se justificava em si mesmo. Alguns burocratas diziam até que o povo tinha memória curta e que Abóboras era uma cidade-dormitória.

As pessoas passaram a ser cada vez mais vigiadas. A guerra, que era política, consumia todos os recursos públicos (que nunca foram públicos). O prefeito, enfim, alcançou seu grande objetivo. Desumanizou-se. Abóboras ficou parada no tempo.

Comentários

  1. Ficou e continua como se nunca estivesse saido e muito comprimido e despertador ligador pra acordar cedo pra ir trabalhar naquela outra filial chamada Bh

    salve jesse um abrazo de Alain Bisgodofu.

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