Lançado em 17 de julho de 2015, na periferia de Contagem (MG). "Colorido só por fora: contos periféricos" reúne doze contos que narram o cotidiano da periferia mineira. Com uma proposta de obra interativa, a capa do livro pode ser colorida pelo leitor. Cada capa pode ser única, diferente e compartilhada no blog ou no facebook do autor.
AUTOR: Jessé Duarte
REVISÃO: Fabiola Munhoz
ILUSTRAÇÃO: Rodrigo Marques
PROJETO GRÁFICO: Gilmar Campos
ORIENTAÇÃO: Filipe Fernandes
EDITOR: Marcelo Dias Costa
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APRESENTAÇÃO
Por Daniela Graciere
Atriz, artista visual e pesquisadora cultural de Contagem (MG).
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INTRODUÇÃO
Por Filipe Fernandes
Poeta e escritor de Contagem. Graduando em Letras pelo CEFET/MG.
Ao sairmos do livro Colorido só por fora: contos periféricos, do grande artista de Contagem Jessé Duarte, a percepção da realidade, das mazelas do mundo ao nosso redor e das questões sociais relativas às periferias de Minas Gerais poderá ser mais atenta e sensível aos olhos do público devida à aproximação que as personagens dos contos nos forçam a estabelecer com suas dificuldades. Tal é o choque do leitor, ao se deparar com figuras tão simultaneamente humildes, miseráveis e marcantes, que logo reconhecerá, na pele de pessoas como Ana, Dentim e Joaquim, alguns dos muitos seres que se cruzam por entre nós – em nossos caminhos diários –, mas que coexistem muitas vezes invisíveis na sociedade.
E pode ser pela secura dessas vidas, das suas perspectivas construídas e pelo desejo de mudança que o autor sugere uma capa incolor, branca e apenas desenhada para que, metaforicamente, nós mesmos possamos dar cor ao mundo descrito e agir, no mundo real, em prol do bem comum.
Logo, fazemos companhia a moradores de rua, pobres que se alojam em locais de risco e diversas outras personagens marginalizadas e, em certos momentos, sentimos os seus problemas, seus dramas e fardos que, quase sempre, nos levam à inevitável catarse. O contexto político não fica de fora, pois, tal como se mostra, sobretudo, no conto “Abóboras”, no qual atesta um ‘governo para o governo’, o autor denuncia um descaso veemente para as causas populares, que se evidencia bem na ótica de várias figuras carentes do livro, como na fria afirmação “não lembra de nós” da personagem Nanita.
Colorido só por fora: contos periféricos é um livro para ser refletido e vivido enquanto leitura para, como Jessé, termos a sensação de que estamos ao lado dos indivíduos criados (mas que existem!), já que o poder humanizador da literatura é capaz de conscientizar as pessoas através da palavra. A possibilidade de se enxergar nas situações descritas e pensar o ‘eu no mundo’ é única e intrínseca de cada leitor; mas pode ser por meio dessa experiência individual que a noção de convivência coletiva tome forma e se transforme em valor comum no plano da vida.
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DOIS CONTOS DO LIVRO
1. Colorido só por fora
- Verde.
- Amarelo.
- Verde, porra!
- Cê quer mandar em tudo sempre.
- Não vai querer começar agora, hein? Não provoca.
- Verde por quê?
- Amarelo por quê?
- Amarelo fica mais claro e verde é cor de cemitério.
- Quem disse isso?
- Uai! Cê não viu? Tão pintando o muro do cemitério e a cidade toda com aquele verde de morto.
- Não viaja! Vou usar verde limão. Pode ficar tranquila que não vai ficar verde cemitério.
- Ah, nem vem! Aquela vez cê disse que a parede da sala ia ser rosa choque e ficou rosa calcinha no final.
- Mas quem misturou a tinta? Eu não fui. Verde e pronto.
- Não concordo.
- E tem outra coisa. A cor da casa do Beto, já viu? E a do Vando? Do Geraldo? É tudo amarelo já. Vão falar que é inveja nossa.
- Agora é ocê que tá viajando.
- Tô mentindo?
- Então tá. Se for por isso, já viu a casa da Preta? Da Flor? Da Carla? Hein? Me fala! Qual cor que é?
- Não reparei.
- Não reparou? É verde, tudo verde limão. E eu disse amarelo, mas é amarelo abóbora. Não tem nada a ver com a cor da casa desse povo aí.
- Porra! A gente pinta uma parte de cada cor então. Uma parte de verde e outra parte de amarelo.
- Pronto. Ai vai ficar parecendo a bandeira do Brasil, né?
- Foda-se. Culpa da sua implicância.
- Ah! Desse jeito não tem como conversar.
- Nem de pintar. Eu não coloco a mão em porra nenhuma mais.
- Eu tô cansada disso. Sabia?
- E eu?
- Pode ser uma parte de cada cor, vai.
- Hum!
- Mas a parte da frente fica amarela.
- Foda-se. Pinta do jeito que cê quiser.
- Daqui a pouco a gente nem consegue a tinta mais.
- Culpa minha, é que não vai ser. E foda-se também. Eu não gostei dessa coisa mesmo! Vem aqui, pinta os barraco tudo e fala que a vila é feliz. Feliz é o caralho! Tá tudo a mesma merda sempre.
- Isso eu já sei. Mas é de graça. E, de graça, até injeção na testa.
- É por isso que tá tudo na merda.
- Então não implica.
- Eu só animei de pintar pra te agradar. Mas ocê discorda de tudo.
- Eu discordo de tudo?!
- Deixa isso pra lá. Melhor nem mexer com isso nada.
- Mas vai ficar só nossa casa sem cor.
- Então para de frescura!
- Quem tá de frescura aqui? Eu?
- Não. Eu. Não começa de novo. Pinta essa merda então.
- Amarelo.
- Verde.
2. Vestido de luto
Manhã de um domingo qualquer. As pessoas caminham pelas ruas. Voltam da igreja. Levam para casa o frango abatido. Num barracão pendurado por uma corda, à margem de um córrego mal cheiroso, Ana abre os olhos: dezessete anos, estudos interrompidos, mãe, desempregada, bolsa família atrasada, expulsa de casa pelo pai alcoólatra. Sustentada pelo companheiro que vive do tráfico.
Ana esfrega os olhos, com as mãos que parecem lixas, e se senta na beirada da cama como se sentasse à beira de um abismo. Pensa em desistir. Saltar fora, ao dia. Em ficar deitada. Abatida. Mas não pode, não tem esse privilégio. Ainda se culpa, lembrando que essa realidade é compartilhada por centenas de pessoas desse lugar que sobrevive sorrindo.
Com muito custo, Ana sai, caminha pelas ruas que começam largas e logo se estreitam como se quisessem espremer quem caminha por elas. Portas escoradas. Na beira do esgoto, a céu aberto, carroças encostadas. Cavalos que puxam toneladas de entulho diariamente. No ponto mais alto da vila, um velho manequim é vestido com roupas pretas sempre que alguém vai morrer. O boneco está vestido de luto. Sinal de perigo! Mas, nada de anormal, tudo como de costume.
É mais um domingo triste, com o céu cinza e poluído pela fumaça das fábricas. Não há muita coisa a fazer na vila. Ana pode ir a uma igreja ou a um bar, as únicas opções de lazer na periferia. Escolhe o bar da Neide, o mais movimentado nos finais de semana. As cadeiras e mesas no meio da rua, a máquina Jukebox que toca quatro músicas por dois reais e a esquina de um cruzamento grande e movimentado talvez expliquem o sucesso do bar, mesmo com a concorrência das igrejas. Ana senta-se sozinha, pede uma cerveja e, enquanto bebe, tenta se desfazer de um enorme peso, que dobra sua cabeça com uma lembrança recente.
Há alguns dias, numa noite entrecortada pelos sons das fábricas, quando Ana voltava de um baile, presenciou a execução de um jovem às margens da linha de trem. Foram trinta e sete tiros e, ainda vivo, sem se dar conta de que a queimação súbita no corpo era a morte chegando, o jovem disse: “não fui eu, véi!”. Então, sentiu um líquido com gosto de ferro escorrendo de sua boca: “Ai meu Deus, me ajud...”, e o barulho de mais um tiro, bem no meio da cabeça, fez com que Ana, que estava paralisada, soltasse um gritinho abafado, sem perceber.
- Cê não viu nada! - disse um dos assassinos andando na direção de Ana – Ouviu, vagabunda?!
- Ouvi. - Ana respondeu com a voz tão trêmula e assustada, que pereceu ter dito “vi”.
- Fica esperta, vagabunda. Cê viu, né?! - gritou, com as mãos já invadindo o corpo de Ana, num gesto que a deixou ainda mais paralisada - Em boca fechada não entra mosquito, entendeu?
- Deixa pra lá – interrompe outro – Ela é treta do Binho, tá limpeza. Vamo sair fora.
- Fica esperta, vagabunga! – deu um tapinha no rosto de Ana e saiu rindo.
No outro dia, Ana não pensou duas vezes e contou tudo para o seu companheiro, que jurou vingança. “Não vai ficar de graça” - disse ele. “Vou conversar com o Sangue e resolver isso”. Pegou sua arma e saiu pra correria. Depois disso, não voltou nunca mais.
Já são dez dias de espera. Ana teme subir até a boca para saber de alguma notícia, e tudo pesa na sua cabeça, enquanto está sentada na mesa do bar. As outras pessoas no bar já estranham o manequim vestindo luto a tantos dias seguidos. “O preto da roupa dele tá ficando cinza” - brincam - “Ou alguma hora começa uma guerra na favela!”. Ana, no entanto, ouve tudo e acha normal. Para ela, sempre foi assim: Cinza. Sempre teve os amigos morrendo; sempre teve gente matando. Sempre teve o manequim; sempre teve o medo. O medo da polícia, do tráfico, da família, da escola. A vergonha de não conseguir entender as coisas a sua volta.
Enquanto toma mais um gole da cerveja barata, Ana tenta imaginar uma vida melhor. Ela pensa na filha de um ano que deixou com a avó, pensa se ainda haverá tudo isso, quando sua filha tiver dezessete anos. Pensa como a vida seria melhor se ela tivesse um quintal tranquilo com plantas simpáticas e uma gangorra na varanda, onde pudesse balançar a eternidade; sentir o sol da manhã na sua pele negra. Ana chega a sentir o calorzinho da imaginação, quando, de repente, um susto! Um estampido, corta seu sonho acordado, com um agudo infinito. Ao contrário da imaginação, sente o seu corpo gelando. Tenta olhar para frente, mas tudo fica embaçado. O corpo tomba na cadeira, e a cabeça pesada se dobra para trás. Percebe que é com ela.
Todos correm. As portas do bar são fechadas, a jukebox desligada e, poucos minutos depois, uma multidão está em volta de Ana, olhando para os seus olhos arregalados de pupilas dilatadas, à distância de um metro da cadeira. Depois, a um metro e meio. Conforme o tempo passa, a distância vai aumentando, delimitando-se pela poça de sangue, que escorre.
- Alguém chamou o SAMU? - pergunta uma senhora – Chamou?
- Ela ainda tá viva, meu Deus! - diz num tom solene uma garota que toma sorvete de chocolate, e que não morava ali, mas fazia uma visita de domingo à família – Ela vai engasgar com o sangue! Alguém tem que levantar a cabeça dela!
Tenta se aproximar e é interrompida pelo primo.
- Não! Cê tá louca? - segurando-a pelo braço.
- Mas, vai ficar todo mundo só olhando? – inconformada, ela olha para todos – Alguém tem que fazer alguma coisa!
- Depois eu te explico – responde o primo em voz baixa, com o canto da boca.
- Tiro na boca? Deve ter falado de mais... – comenta um homem de bicicleta amarela.
- É a Ana! - grita desesperada uma amiga mais próxima.
- Que Ana? - Pergunta o da bicicleta amarela.
- A Ana, da Mundica, minimo.
- Ah! A Ana, sei.
Engasgando no próprio sangue, Ana fica cada vez mais abatida e distante de todos. Sente seu corpo sendo vestido pelo luto. Cada vez mais frio. Não consegue perceber mais nada do que dizem as vozes dos vultos a sua volta. Seu corpo teima em resistir, treme, dá pequenos sinais de vida. Convulsões. Sua mãe chega. Mas, fica parada em um canto, amparada por algumas amigas. Ela não pode fazer nada. Como todos, ela sabe que está sendo vigiada. Contenta-se em sofrer com um choro engasgado junto à filha. O SAMU chega. Não entra na vila, esperando pela escolta policial. Ana morre, e o espetáculo já não comove mais ninguém. Todos seguem o domingo filosoficamente.
- Perdemos ela – foi a única coisa que disse o socorrista mais tarde, numa frase óbvia e comum. A polícia isola a área, que já tinha mais de 5 metros de diâmetro e ocupava toda a esquina tomada pelo sangue de Ana, que agora escorria pelos bueiros. De dentro de uma das viaturas, um policial resmunga sozinho, olhando para o corpo de Ana: “Trabalho feito, vagabunda!”.
No outro dia, bem cedo, antes que todos acordassem, Neide tentou de tudo para tirar a mancha de sangue do chão, em frente ao bar e no asfalto irregular. Usou vinte litros de soda, oito quilos de sabão em pó, litros e mais litros de água. Mas de nada adiantou. A mancha ficou para sempre na história da vila e a vida voltou ao normal.
Às sete horas da manhã, todos saem para as ruas simultaneamente. Olham para o ponto mais alto da vila, e o manequim está nu.
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